Leia artigo de Paul Bromberg, ex-prefeito de Bogotá que esteve em Porto Alegre participando do V Congresso da Cidade.
Cidadania significa muitas coisas.
Paul Bromberg
Ex-Prefeito de Bogotá, 1997
Não é difícil argumentar de forma convincente ao afirmar que a América Latina deu uma virada com o fim da guerra fria. Já não somos uma peça de xadrez num tabuleiro dominado por duas superpotências que, em sua polarização ideológica, nos encheram de ideologias com as quais não fomos capazes de construir nações baseadas no consenso.
Há 20 anos nossos países latino-americanos têm em comum esse esforço no qual todos nós estamos empenhados: desenhar a convivência política, social, econômica e cultural de nossas sociedades e, a partir disso, construir um futuro próspero. Partimos de grandes dificuldades: temos as cicatrizes da polarização política, de nossas desigualdades e de um sistema econômico no qual o Estado era simplesmente o mecanismo utilizado pelos arrecadadores de renda para ficar com a riqueza da sociedade. Nós devemos sanar essas cicatrizes, não abri-las.
Todos os nossos países empreenderam um processo de descentralização. A descentralização é democratização não porque dá oportunidades “aos territórios” – afinal, os territórios não são pessoas –, mas porque implica uma abertura política de fato: a comunidade política local, mesmo nas grandes cidades, é a comunidade política por excelência. Tocqueville dizia que os municípios parecem ter sido criados pela mão de Deus, enquanto os Estados são inventados pelos seres humanos. Nesse espaço municipal, a quantidade de atores que podem competir com opção de vencer cresceu substancialmente.
No âmbito dessas disputas restritas dos governos municipais urbanos – o fornecimento dos bens e serviços urbanos e a organização da convivência na cidade –, as novas forças políticas tiveram espaços para iniciar processos imaginativos próprios. Processos políticos inovadores que surgiram nas cidades e que foram divulgados pelo mundo todo. Porto Alegre e Bogotá compartilham essa visibilidade que transcende fronteiras, a primeira pelo orçamento participativo, e a segunda pela cultura cidadã.
Em Bogotá, em meio a discursos políticos tradicionais que expressavam de diferentes formas a ideia de “uns contra outros”, surgiu uma proposta que cativou os eleitores e que nos deu a oportunidade de pensar como comunidade, na convivência de quem se esforça para melhorar a vida de todos, uma mudança cultural: a cultura cidadã. E isso aconteceu apesar da existência de uma sociedade que tem um longo caminho a percorrer até se tornar mais justa. Conforme a cultura cidadã, uma cidade é um lugar de intercâmbio cotidiano de relações. Apesar de nossas diferenças, que devemos aprender a valorizar a partir de um denominador comum, estamos unidos pelo uso da cidade, e o seu uso inadequado nos causa inquietação. Na Bogotá daquela época, a sensação de inquietação pela cidade estava distribuída da forma mais democrática possível. Mockus cativou as pessoas com uma ideia que, agora é possível reconhecer, mostrava aquilo que nos une e nos faz solidários como seres humanos. Assim ficou registrada essa imagem na “Carta a nós mesmos”, preâmbulo de um código de conduta urbana – CARTA DA CIVILIDADE –, que o governo de Bogotá solicitou que fosse aprovada pelo conselho em 1997 e que foi redigida pelo escritor William Ospina: “As pessoas desconhecidas que enchem as ruas, andam de ônibus, circulam pelos parques e fazem filas conosco diante dos guichês fazem parte das nossas vidas”. Podem ser amigos ou agressores, aliados ou opositores, ou, simplesmente, outros. Vamos considerá-los ao trabalhar para que algum dia possamos voltar a caminhar sem medo pelas ruas, olhar sem desconfiança para quem se aproxima e ser solidários sem que o medo das consequências por termos estendido a mão a uma pessoa necessitada nos deixe paralisados.
Nessa nova etapa da história de nosso subcontinente, uma ideia nos une: a construção da cidadania. Sobre isso estamos de pleno acordo. Já em relação ao que se entende por cidadania, não há acordo. Sem maiores detalhes, a cultura cidadã pode ser a expressão mais completa da construção da cidadania: a convocação que os cidadãos fazem a si mesmos para compreender igualmente direitos e deveres, e obrigar as autoridades a cumprirem com o seu papel para alcançar esse objetivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário